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O Garotas Nerds foi criado em 2009 com o objetivo de aumentar a representatividade feminina online, construindo novas narrativas a partir da experiência de mulheres dentro do universo nerd.
Atualmente temos quatro volumes da Ms. Marvel lançados no Brasil, o primeiro volume saiu em 2015 e o quarto volume saiu no final de 2017. A roteirista e o colorista são os mesmos nos quatro volumes, em que temos respectivamente a G. Willow Wilson e o Ian Herring. A arte é feita por três artistas distintos, sendo eles Adrian Alphona, Jacob Wyatt e Tareshi Miyazawa.
Nesses encadernados somos apresentados a uma nova Miss Marvel, Kamala Khan, que tem a origem de seus poderes e o processo de aprender a lidar com eles bem trabalhados no decorrer das histórias. É possível vermos muito progresso na personagem, que é apresentada de forma densa e sensível, um ponto importante nesta heroína é que desde o início ela questiona e vai de encontro a vários padrões pré-concebidos e preconceitos cotidianos, que serão abordados a seguir:
Luta contra o preconceito religioso
Kamala é muçulmana e desde o primeiro volume temos a relação dela com a religião sendo abordada. A busca dela por querer ser “normal” que acontece no início da narrativa tem relação com o preconceito que sofre por ser muçulmana em Nova Jersey, em que apesar de ter uma grande porcentagem de muçulmanos, ainda vemos que essa cultura e modo de vida não são dominantes, principalmente na escola. Assim, somos apresentados a diversos rituais religiosos, como a ida dela ao sermão no sábado e também a alguns desejos de sua família, como por exemplo não namorar alguém que não seja muçulmano, que vai ao encontro da concepção de preservar as tradições da família. É muito bacana como essa questão vai se desenvolvendo no decorrer dos quadrinhos, em que além dela ir aos poucos lidando melhor com o preconceito que sofre por causa da religião, ela vai saindo do estado de vergonha para o de orgulho em relação a sua condição como muçulmana, também podemos observar o quanto o simbolismo e as crenças dessa religião vão se conectando a mitologia da heroína conforme a trama vai avançando.
Luta contra o preconceito étnico
Kamala é uma mulher marrom (etnia oriunda do sudeste asiático) e esse ponto é trabalhado de forma direta (e ao mesmo tempo sutil) no primeiro volume, em que são feitas várias comparações a “ser normal” com ser branca. Neste ponto entramos também nas reflexões acerca dos padrões de beleza impostos, em que para ser aceito e bem sucedido é visada uma certa aparência. Um dos principais poderes da Ms. Marvel é mudar sua aparência como bem entender, então, termos ela optando por ser ela mesma, uma mulher marrom, é uma mensagem muito importante, ainda mais se formos pensar no quanto temos poucos casos assim nas grandes editoras como Marvel e DC Comics, é um quadro que vem melhorando aos poucos (Pantera Negra foi de fato um marco, mas isso já é outro assunto) mas ainda não é comum termos mulheres não-brancas como protagonistas fortes e bem construídas.
Luta contra o preconceito por ser adolescente
Kamala, apesar das várias responsabilidades como heroína, é apenas uma adolescente. Em dado momento ela faz uma fala sobre a geração dela ter importância e poder realizar grandes feitos, em um momento que vários outros adolescentes estão desacreditados de seu potencial. Os quadrinhos abordam a dualidade da adolescência que ao mesmo tempo que traz várias descobertas e novas experiências também traz certa descrença do potencial dela por ser “apenas uma adolescente”, deixando a mensagem que essa é uma fase cheia de processos contínuos e que aos poucos Kamala vai ganhando espaço para poder de fato mostrar seu potencial e ganhar reconhecimento.
Luta contra o machismo
Esse ponto ficou mais perto do final porque ele permeia todos os anteriores. Nos quadrinhos são mostradas características patriarcais da religião muçulmana, como por exemplo as mulheres só poderem ouvir o sermão do Xeique em uma partição separada dos homens, e do próprio Xeique, e que tem acesso por uma entrada lateral, ação que é questionada por Kamala. A partir de uma visão ocidental, é comum acharem que mulheres asiáticas são submissas e que não expressam suas opiniões, isso tem relação com estereótipos de uma branquitude que se vale da estigmatização de outras etnias e culturas para se legitimar como superior. Assim, termos essas críticas feitas pela própria Kamala soam como uma auto-crítica importante. Na história inteira tem os muçulmanos que dão apoios pra protagonista nos seus questionamentos as tradições patriarcais, como a Nakia, uma personagem feminina forte e importantíssima para mostrar que ao contrário do senso comum ocidental, escolher seguir a religião islâmica não impede nem anula luta social das mulheres muçulmanas.
Ao falarmos sobre padrão de beleza também compreendemos que isso carrega pesos diferentes entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo que ao pensarmos em etnia, os privilégios de um homem branco não são os mesmos de uma mulher branca, por exemplo. E por fim, a descrença no potencial de Kamala possui relação não apenas com o fato dela ser uma adolescente mas também pelo fato dela ser mulher. Além disso tudo, temos uma representação que foge dos estereótipos de hipersexualização, em que o uniforme dela condiz com um uniforme funcional e prático para as lutas e aventuras do dia a dia. Julgo que esses quadrinhos tem uma ótima representação feminina, pois Kamala o tempo todo é colocada a prova, seja pelos outros duvidando do seu potencial seja por ela mesma, e no final sempre é mostrado o quanto ela é capaz e o quanto ela consegue se superar cada vez mais. Kamala é uma personagem forte, complexa e engraçada, que luta contra as sutilezas do machismo cotidiano. Quando em dado momento é trazido um romance para a narrativa, ele foge de vários clichês e temos (olha que ironia) esse romance servindo como trampolim para mais crescimento e superação da personagem, ao invés de consumir todo seu ser e o foco de sua vida.
Luta contra o preconceito a Nova Jersey
Durante todos os quadrinhos é ressaltada a importância de Kamala como heroína de Nova Jersey pelo fato dela ser a única heroína de Nova Jersey. São feitos comentários diretos e indiretos sobre a maior parte do investimento público não ir para lá e sim para Nova York, por exemplo, assim como os super-heróis. Os quadrinhos trazem várias reflexões da protagonista sobre as coisas que ama e odeia em Nova Jersey sempre com ela se colocando como parte daquele lugar e se reconhecendo nas pessoas que moram por ali. Assim, temos uma heroína que não está salvando uma cidade central e valorizada, mas sim um estado visto como periférico e muitas vezes desvalorizado.
Dentre tantos apontamentos, não podemos deixar de citar que a roteirista, G. Willow Wilson, é uma mulher muçulmana de Nova Jersey, trazendo assim suas vivências e seu repertório para as páginas e contribuindo para uma representação que foge dos estereótipos usuais.
Assim, Kamala Khan, é uma mulher marrom, adolescente, muçulmana e super-heroína de Nova Jersey que enfrenta vários desafios e no decorrer de sua trajetória vai conhecendo melhor a si mesma e se desenvolvendo enquanto heroína e como mulher. Com uma visão crítica e ao mesmo tempo ingênua, vemos a protagonista desconstruindo conceitos que tinha sobre si mesma e sobre os outros e seguindo com sua luta contra o preconceito.
Crédito: este artigo foi produzido com a colaboração de Tami Tahira